Uma das mais monumentais obras de Albert Camus, certamente o mais profundo existencialista francês, (diria até mais que Paul Sartre), O Estrangeiro, enceta uma reflexão do deslocamento do nosso eu, da perda de uma identidade, do não encontro dessa identidade de si para consigo mesmo.
A partir de Camus, surgiram várias outras interpretações do Estrangeiro, seus dramas noutras terras e do ser em busca de raízes. É claro que Camus ficou mais conhecido, mundialmente, pela reflexão filosófica sobre o suicídio, o qual ele considera a única questão realmente séria em filosofia, questionando que decidir se viver vale a pena ou não, é a questão fundamental de filosofia.
O debate camusiano sobre o suicídio, contudo, na minha visão, sempre foi superado pela questão do drama do estrangeiro, embora - sob certo aspecto - ambas as questões estejam, dialeticamente, inter-relacionadas.
Até hoje, quando reflito sobre Camus, penso que ele sempre falava de si mesmo, desde o estrangeiro, ele, um argelino, na França, ele, um suicida, que provocou sua morte, prematuramente. É claro, reconheço o debate subjacente e acalorado, na alta intelectualidade francesa, se sua morte foi acidental ou não. O certo, é que até em sua morte ele deixou dúvidas.
A reflexão camusiana vale para todos nós. A rigor, somos todos estrangeiros dentro de nós mesmos, com nossos destinos, com os rumos de nossas vidas, com nossas identidades perdidas, com nossas transformações, com nossas lembranças, com nossas perdas, enfim, com tudo que é deixado para trás e que - de alguma forma - marca-nos, em nossa intimidade, no mais profundo âmago do nosso ser. Não sem razão, os elefantes voltam ao lugar onde nasceram quando pressentem a chegada da hora da morte.
Ontem, na tarde de ontem, vivi um desses momentos raros de um profundo drama existencial. Ali, senti-me o verdadeiro estrangeiro. Estava no Posto fazendo uma troca de óleo no carro, espero, espero, espero.
O tempo parecia não passar. Terminada a troca, pago, pego o carro e dirijo-me em direção a casa onde eu morei os últimos anos, com minha família. De repente, após andar e andar, paro, penso, reflito, recobro a consciência, acordo, sei lá o que me aconteceu. Até agora não entendo como essa falha de memória foi tão aguda.
Se eu, com toda minha vivência, passo por isso, pus-me na condição de minha filhinha, que foi arrancada do único lugar que viveu desde que nasceu, e aí sou assolado pelas lembranças e recordações. Lembrei-me, então, quando eu passei a viver com ela no Hotel, na madrugada, acordava, e pedia-me para passar em frente a casa azul, que era a cor da nossa ex-casa. Sempre tentei dissuadi-la, pois bem entendia que aquilo era a gênese de uma depressão infantil.
Para mim, passar em frente a casa onde vivíamos, foi horrível. O pinheiro que plantamos está enorme, crescido. Com ele, vieram todas as reflexões de cada passo na construção de uma vida e de uma identidade. Instala o ar, coloca um box de vidro, coloca grade, coloca-se um portão gigante, controem-se móveis sob medidas, monta-se uma biblioteca, enfim, tudo que fazemos em nossas casas, nos lugares onde moramos, tem um sempre um significado significante, desde a casinha do cachorro, passando por uma pintura, pelos móveis e sua disposição, pela porta e pelo portão, pelo convívio social e as amizades, pelos ritos do ato de cozinhar. E de repente, do nada, somos arrancados de tudo, perdemos tudo. É certo que esse debate é banalizado, pois dizem que ainda preservou-se a Vida, mas a vida só é vida com suas extensões, a começar pela família, pelas pessoas que nos cercam, pelos amigos, pelas coisas materiais que nos cercam, dos pratos e talheres, ao fogão e a geladeira, passando por tudo que se cercava.
Somos um todo, o passado é parte integrante do nosso ser, ninguém existe sem passado.
Ocorreu-me, certo dia, uma lembrança muito recente envolvendo minha filhinha e um garfo que era de nossa casa. Um apenas, que ficou comigo. Estávamos numa outra casa e fomos comer uma lasanha. Por julgar esse garfo mais resistente que os demais, coloco esse para Nina. Ao sentar-se, na disposição de alimentar-se, fixa o olhar no garfo e me pergunta porque é que eu não quis pegar para mim o "garfo que era da nossa casinha". Ali, com aquele gesto, com as lágrimas que estragaram nosso almoço, pude perceber bem claramente a extensão do dano em sua cabecinha, embora seja apenas comigo que ela deixa aflorar, dá vazão, a esse lado altamente complexo do assassinato prematuro de sua identidade. Não sem razão, o local preferido dela em Santiago, continua sendo o Ginasião Rubem Lang. Noto, de certa forma, que ela encontra ali uma realimentação espiritual, a saciedade de suas angústias e desopila um pouco a marca das recordações.
Até hoje não tenho claro a extensão do dano que causamos nela, mas tenho bem claro que os reflexos vão emergir, mais dias, menos dias.
Vulgarmente, chamamos, no chulo do sul, de "teatino", (aceita-se também a expressão tiatino) essas pessoas que perambulam pelos lugares, sem uma raiz, sem uma identidade, sem uma família, sem um lugar fixo para morar.
O que poucos conseguem entender, é que o teatino, é uma sina de um destino cruel, de pessoas fadadas a viverem de canto em canto, em desencanto, buscando nos outros, de paragem em paragem, a construção de uma identidade, nem que seja por fragmentos de momentos. Afinal, os teatinos sabem que o alimento da alma, derivado da identidade social, não mais lhes assiste.
O pragmatismo social, eivado de fórmulas mágicas, tende a simplificar tudo nos conselhos simplistas: monta outra casa, monta teu apartamento e segue o baile. Se fosse assim tudo tão simples, que bom seria a vida, sem a emergência de consciência, sem reflexões, sem passado, sem história, sem raízes, sem identidade, sem lembranças, sem recordações, em última instância, sem amor.
Natal e ano novo, afora serem datas festivas no calendário de nossas vidas, são, contudo, datas que ensejam reflexões, balanços, hora de contabilizarmos o saldo de nossas existências, com nossos erros, acertos, vitórias, derrotas, é hora de traçarmos planos, construirmos metas e edificamos sonhos, para quem ainda sonha.
Hoje, eu acordei terrivelmente ruim, meu peito sufocava minha alma, a dor, embora invisível, era real, concreta, sisuda, impiedosa. Mas é meu destino, minha sina, minha condição de estrangeiro, escravo de lembranças, talvez mais apátrida de minha própria existência que os apátridas em si mesmo, na condição real de ausência do solo pátrio.
Ando, perambulo, busco, caminho, busco, busco, busco, mas cada vez mais descubro-me um estrangeiro dentro de mim mesmo.