“É um privilégio como evangélico e negro ter a possibilidade de lutar contra o golpe. Nós não podemos aceitar a reconstrução de uma senzala que ainda não terminamos de derrubar”. Dessa forma, o pastor Ariovaldo Ramos encerrou sua participação em um encontro de evangélicos contra o golpe realizado na quase bicentenária Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), no centro da capital, nesta segunda-feira (28).

O evento reuniu intelectuais religiosos para discutir a manutenção do Estado Democrático de Direito, o papel da mídia e o estigma de ultra-conservadorismo que recai sobre os evangélicos, propagado por algumas lideranças cristãs no Congresso Nacional. A mesa de debate contou, além de Ramos, com o sociólogo Anivaldo Padilha, a professora e pesquisadora da Universidade Metodista de São Paulo, Magali Cunha, e a desembargadora aposentada e doutora pela Unicamp, Magda Biavaschi.
Ramos é membro do grupo Missão na Íntegra e leu o Manifesto de Evangélicos pelo Estado de Direito. Para ele, ser evangélico exige postura, posição social e tomada de consciência. O líder religioso criticou as medidas consideradas arbitrárias do judiciário e a cobertura da imprensa em relação ao momento político do País.
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O pastor Ariovaldo Ramos (foto: Paulo Pinto / AGPT)

“Rejeito a cobertura midiática tendenciosa que traz ódio e intolerância contra quem pensa diferente. O que temos visto na grande imprensa é estarrecedor, estarrecedor. Ela não está vivendo com a informação, mas com a contra-informação. Não queremos ver as luzes da democracia se apagar novamente. Jesus lutou incansavelmente pela liberdade humana”, afirmou.

O pastor lembrou do apóstolo Pedro, “que ensinou que a vontade de Deus passa pelo voto”.
“O pastor é para o povo e não o povo para o pastor. Somos conservadores com a nossa fé e progressistas em relação a construção do direito”
De acordo com ele, certos líderes evangélicos na Câmara deturpam os ensinamentos de Jesus e afirmou que um dos papéis dos pastores é despertar a consciência nos fiéis. “O pastor é para o povo e não o povo para o pastor. Somos conservadores com nossa fé e progressistas em relação a construção do direito”.
“Nós queremos mudanças, mas pelas vias democráticas. Não se pode corromper o Estado Democrático de Direito para combater a corrupção. A voz das ruas deve ser ouvida, mas nos limites da Constituição brasileira. ”, defendeu.

Três vezes golpe

Sobre as tentativas golpistas em vigor no Brasil, Anivaldo Padilha contou “estar vendo o mesmo filme pela terceira vez”. Filho de pai admirador de Getúlio Vargas, presenciou, ainda na adolescência, a campanha feita contra o ex-presidente, que culminou com seu suicídio em 1954. Dez anos depois viveu uma situação semelhante com o golpe militar. E agora encara novamente um momento parecido. “E, em todos esses casos, sempre usaram o argumento de combate à corrupção”, lembrou.

Se antes havia os militares para derrubar um governo democraticamente eleito, disse Padilha, “hoje há o judiciário e a Polícia Federal, com o apoio dos conservadores do Congresso”.
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Anivaldo Padilha (foto: Paulo Pinto / AGPT)

Ele afirmou que há diversos projetos de lei na Câmara dos Deputados para frear direitos trabalhistas, indígenas, LGBTs, de mulheres e que a tentativa de golpe é parte decisiva para alas conservadoras conquistarem a supressão de direitos sociais. O sociólogo também analisou a relação da elite nacional com a população comum.
“Toda vez que o povo começa a emergir ela (a elite) reage, porque tem medo e desprezo pelo povo. A elite quer uma democracia sem povo”
“O Brasil só teve a primeira universidade no início do século passado porque a elite mandava os filhos estudarem no exterior. O povo, para eles, não precisava ser educado. A elite brasileira nunca aprendeu a conviver com a democracia. Sempre olhou para o povo com grande desprezo.  Toda vez que o povo começa a emergir ela reage, porque tem medo e desprezo pelo povo. A elite quer uma democracia sem povo”.

Marketing do pessimismo

“Onze famílias colonizaram o território midiático”, afirmou Magali Cunha, que analisou com detalhes a cobertura política da grande imprensa brasileira nas últimas décadas. Ela citou o apoio da Globo e da Folha de S. Paulo ao golpe militar de 1964, a edição tendenciosa do Jornal Nacional em relação ao debate entre Lula e Fernando Collor de Mello, em 1989, a divulgação de denúncias contra petistas dois dias antes das eleições presidenciais de 2006 e a cobertura da mídia durante os protestos de junho de 2013.
“Em 2013 bateram muito na tecla de ‘o gigante acordou’, como se antes o povo brasileiro vivesse na total inércia política. Mas a nossa história sempre foi escrita por negros, indígenas, pobres, trabalhadores e mulheres que nunca dormiram para conquistar qualquer direito”.

De acordo com ela, os jornais O Globo, Folha, Estadão, as revistas Época, Veja e Isto É e, principalmente, as emissoras Globo e Globo News,  criaram, a partir de 2013, heróis nacionais com mais ênfase e super-potencializaram a crise econômica para criar um “marketing diário do pessimismo”.
“A crise existe, mas não como é pintada diariamente na imprensa. Eles passaram até a usar toda hora o termo ‘apesar da crise’, quando eram obrigados a dar alguma notícia positiva da economia brasileira”.
A professora elogiou a ida da esquerda às ruas para protestar contra o golpe. “Por causa das manifestações populares, a mídia tem que justificar diariamente que o está acontecendo no Brasil não é golpe. Mas é o que estamos vivendo”.

Para Magda Biavaschi, está se desenhando uma tentativa de retirada de direitos populares e de proteção do Estado aos trabalhadores, comandado pela mídia e pela ala conservadora do Congresso Nacional. “Foi sequestrada do povo a possibilidade de avanço com Getúlio Vargas. Foi sequestrada a mesma possibilidade em 1964. E estão tentando sequestrar de novo agora”, afirmou.
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Magda Biavaschi (foto: Paulo Pinto / AGPT)

Ela explicou que parte do PMDB tem a intenção de introduzir no País uma agenda política e econômica extremamente liberal, em que quem dita a regra é o negociado sobre o legislado. Ou seja, um modelo no qual as relações de trabalho passariam  ser negociadas livremente, sem direitos trabalhistas garantidos pelo Estado, em contraposição aos avanços dos governos do PT.

“Lula e Dilma deixaram a dever em temas como reforma agrária e tributação de renda progressiva, mas os avanços sociais e trabalhistas são indiscutíveis. O Bolsa Família, as cotas, o Prouni e, principalmente, o fortalecimento do salário mínimo são avanços muito substantivos no Brasil. O movimento liberal quer tirar os direitos sociais conquistados desde 1930. Não é teoria da conspiração. É a verdade”.

Para a pesquisadora, com os avanços sociais, a “Casa Grande” teve que começar a conviver com a “senzala”, e neste momento, parte da sociedade passou a mostrar com mais veemência sua cara conservadora e, em muitos casos, fascista. “E essa gente precisa de heróis. Antes eram os militares. Agora são heróis de toga”.
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Foto: Paulo Pinto / AGPT

Sobre a tentativa de impeachment de Dilma, a pesquisadora foi enfática: “Impeachment está, sim, na Constituição; mas há condicionantes. Há de ter crime comprovado. A Dilma não tem qualquer processo de corrupção. Então é golpe”.