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Channel: JÚLIO PRATES
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Eu vou seguir ... tenho uma longa e empoeirada caminhada pela frente, vou sem sentido, sem planos, tenho uma rota, mas não um rumo, sei ir e voltar como um cego que conhece o caminho e vive perdido na cegueira.

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Minha filhinha passou o dia comigo. Como sempre, não dormi, saí cedinho. 

O caminho é complicado. Raras pessoas entendem o amor que sinto por minha filha. Por isso, todos ficam pelo caminho. Eu vou avançando, até que a minha consumação física seja concreta. 

Duvido que alguém entenda minha filha melhor do que eu. Leio-a, antes de falar, em pensamento. Até uma foto que ela me entrega, com uma pontinha de inverdade, logo descubro e peço a Verdade, "em nome de Deus". Ela está sendo ensinada para mentir, um inferno, porém, comigo, ela acaba revelando tudo. Não da verdade pela verdade, mas pelo amor, porque ela sabe quem eu fui sempre para com ela. 

Hoje eu perguntei para ela: "por que uma pessoa chora". A resposta veio fulminante: "por tristeza e emoção". E completou "o teu caso é tristeza, pai, de viver longe de mim".

Ela gosta de parar e ficar horas conversando comigo. Me conta histórias, me pergunta coisas e me faz revelações estupendas. Nina é demais para seus cinco anos.

Nossas conversas, desde que nos separaram, aconteciam no cemitério abandonado na beira de uma estrada. Não tinha e nunca teve conteúdo místico ou a maldade que fizeram conosco. Nina adorava as cercas de pedras, os túmulos velhos, as lagartixas, lagartixinhas e lagartos que habitavam o cemitério. Ali parava, sentava nos velhos muros, jogava pedras nos lagartos e me fazia contar-lhe histórias fantásticas, de Flauberts a Gabriel Garcia Marques, ela adorava aquela de Erendira, que ao abrir as laranjas, escorriam esmeraldas. 

Nina sempre soube que eu era um caçador de monstros. Empreendia longas jornadas, era uma época pré-histórica, morávamos em cavernas e tocas, dragões voadores, dinossauros, tudo sempre foi povoado de fantasia. Até que a realidade nos esmagou.

Depois que mataram o cemitérios, onde a gente curtia a paz e momentos de profundo afeto que une um pai e uma filha, ela inventou, por conta, o covil de pedras preciosas. Paramos nas estradas empoeiradas e ficamos juntando pedrinhas brancas, com tons de preciosidade. Logo após o cemitério, descobrimos velhas taperas. Ela quer morar ali. Senta-se, abraça-me e quer eternizar o momento. 

Nina sabe das coisas, ela tem sensibilidade, ela nota tudo em mim, ela sabe o que aconteceu comigo, com minha alma, com minha saúde. Ela esforça-se para compensar tudo. Recebo tantos beijos, tantos abraços, tantos beijos melados que só eu sei, aliás, não sei de onde sai tanto afeto.

A estrada é longa. Tudo vai ficando para trás. Hoje, ficou mais uma, que nunca esteve, a vida é além da carne, a vida é amor, sensibilidade, afeto, carinho, troca de vivências, cuidado um com o outro. Eu vou seguir ... tenho uma longa e empoeirada caminhada pela frente, vou sem sentido, sem planos, tenho uma rota, mas não um rumo, sei ir e voltar como um cego que conhece o caminho e vive perdido na cegueira. 

Eu não vou levar nada da vida. Aos poucos, fiquei sem nada. Mas louvo a razão de Divaldo Franco, vou levar um conjunto imaterial de valores, mas também vou deixar - nem que seja só para Nina - essa marca tão profunda, tão escondida, tão invisível, mas tão real, que se torna tão concreta, que são as marcas de um amor incondicional, sem trocas, sem compras, sem chantagens, apenas o amor pelo amor. 

Minha filha sabe que eu a amo. Noto que ela me ama e ninguém conseguiu matar o elo que nos uniu. Ela sabe o que eu fiz, tem consciência, viu e presenciou tudo. Sabe sobre renúncias, sabe sobre o que é Valor. Não valor desse mundo bestializado, onde tudo é mercadoria, até o afeto, o carinho e o amor. 

Imaterial, quando eu transcender, ficará imaterial da mesma forma, mas materializado nos valores que ela absorveu. Por isso sentou-se comigo nessa manhã, numa velha tapera, ela não quer casas, mansões, apartamentos, carrões, dinheiro, roupas, noto que ela quer é apenas afeto, dar e receber afeto. Nina é a expressão mais perfeita do dom sensitivo divino do amor, da afeição, do carinho e da bondade, em sua pureza mais extensa e impossível de ser descrita na linguagem humana.

Ela sabe que eu vou voltar a caçar monstros. Já a descrevi sobre as longas jornadas. Ela está preparada para tudo, sabe que numa dessas caçadas eu posso ficar para sempre, engolido pelos monstros. Mas ela também sabe que a vida passa. Ela sabe que reencontro pode ser Eterno. Nos céus, nos infernos, na terra do nunca ou no nada. Apenas no breu.  

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