Domingo último, fui visitar minha filhinha. Docilidade ímpar. Amor eterno.
Ela recebeu-me ao lado de uma amiguinha, Maria Eduarda Fortes, 8 anos, cujo pai, PM Fortes, é vizinho e amigo da família, no Puitã, em Maçambará, de longos anos. Apelido: Dudinha. Uma criança muito linda, amável, carinhosa ... passa os dias com a Nina.
Achei tão interessante e tão curioso como os fatos marcam a vida das crianças e como elas contam as versões dos fatos entre si, sem que nós – adultos – saibamos.
Cheguei, Nina veio correndo. Apresentou-me a Dudinha e fui passando o que ela houvera me pedido: bastão de cola, purpurina, cartolina, sabonetes da Frozen ...
Mal começo a conversar com Nina, e Dudinha pergunta se ela pode me perguntar a “história da foto”.
Nina responde: “sim, o pai deixa”.
Aí Dudinha me pergunta de sola: “é verdade que vocês tinham uma foto, o senhor, a Nina e a mãe dela e a mãe dela cortou a foto e tirou a parte dela?”
Meu Deus. Gelei-me por dentro. Recém tinha chegado e imaginei que a Nina fosse desandar em lágrimas. Antes de responder, desfiz a conversa, abrandei a situação, inventei uma outra versão e saí do assunto.
Aquela pergunta não me saiu mais da cabeça. Ali eu descobri o quanto tudo marcou a Nina e me veio à mente a situação mais dolorida que passei em toda minha vida. Sofri pelo sofrimento da Nina. E ali notei que tudo estava muito vivo na cabeça dela e marcou-a tanto, que, na intimidade, com a amiguinha dela, valorava o episódio traumático, tanto que despertou a curiosidade da amiguinha.
De certa forma, foi aberta – de novo – uma ferida, que talvez nunca mais cicatrize na cabecinha da Nina e nem em minha mente.
A história é assim:
A mãe dela havia se mudado de casa; passado alguns dias, eu entro na casa com a Nina.
Pela primeira vez, ela viu a estante gigante que eu tinha desmanchada e os livros, todos empacotados, prontos para minha mudança.
Ao levar suas coisas, a mãe da Nina pega a foto que tiramos no Natal de 2013 e corta a sua parte, onde ela aparecia na foto. Recoloca a foto no quadro, deixando apenas eu a Nina.
Nina olha a foto cortada, engasga. Olha a estante desmanchada e os livros empacotados e me pergunta: por que vocês fizeram isso. Lágrimas e mais lágrimas.
Não respondi. Falei em Deus, falei em amor, falei no futuro, que ela cresceria, enfim, não entrei no mérito da pergunta dela.
Nina guardou tudo. Quieta. Conheço a expressão do seu semblante e a própria expressão corporal dela. É a linguagem facial e corporal da criança.
Senti que não tinha clima na casa. Fui posar no Hotel do Batista com ela.
Passados vários meses, estávamos no escritório do Sindicato. Ela brincava no computador e eu estava na frente, na calçada, com o Rossano, meu sobrinho, que é advogado, e diversas outras pessoas ...
Nisso, eu escuto um choro desesperador da Nina. Chorava, aos prantos, aos prantos ... corri até ela. Imaginei um choque, sei lá, eu nunca tinha ouvido-a gritar daquele jeito ... era uma situação totalmente anormal.
Ela estava no meu notebook vasculhando velhas fotos (ela sempre teve o hábito de vasculhar fotos) e encontrou a tal foto, só que inteira: eu, ela e a mãe dela.
Pergunto: - Filha o que houve?
Jamais, naquela fração de tempo, imaginei do que se tratava.
Ela aponta para o computador, para tela do computador, coloca o dedo na foto, e chorando balbucia: - isso aqui nunca mais vai acontecer.
Vê-la naquele estado, cortou-me todo, por dentro. São esses punhais fictos da vida, que cortam a gente na alma e no espírito. Não foi uma punhalada, foram vários cortes de uma ponta a outra do meu corpo. É tudo tão complicado, eu sentia a dor em meu corpo. Foi a pior dor da minha vida. Nunca me perdoei e nunca me perdoarei.
Dei tanto amor para minha filha e causei a maior lesão espiritual em sua vidinha, em sua infância.
Nesse domingo, eu percebi que a lesão continua a sangrar. Que o dano espiritual tende a se perpetrar, eternizando a somatização de uma dor que marcará o resto dos seus dias na face da terra.
Eu não dormi a noite de domingo. Fiquei acordado. Uma dor no peito, um sufoco, uma angústia, uma tristeza tão profunda ...
Um dos atos mais sérios da vida é a decisão de gerar um novo ser. A gente se torna responsável pelo destino, pelas alegrias e pelas dores do ser que geramos.
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Foto e a arte no meu escritório, essa noite |
Uso minha própria dor, para, pedagogicamente, refletir sobre a seriedade de ser pai. No meu caso, na minha existência, nessa tragédia existencial que virou tudo, perante a vida, perante a sociedade, pelo julgamento moral das instâncias éticas da organização social, e, também, pelo julgamento divino que vou passar, não posso me omitir e nem transferir culpas ou responsabilidades. A culpa disso tudo é minha. E eu tenho que pagar, aqui e quando me defrontar com o julgamento divino. Sei que vou pagar.
A gente deve pensar um milhão de vezes antes de ser pai.
É importante refletirmos sobre essa condição e esse condão da delegação do Criador. Para não nos tornarmos patéticos e cálidos, escravos de nossa consciência e lutando eternamente com o pavor da culpa que massacra nossas consciências.
Eu me tornei um personagem de Dostoiewiski. Crime e Castigo é o binômio que assola meu destino. Não matei fisicamente uma criança, como na obra de Fedor, onde existe um assassinato (embora não de criança) mas cometi o crime espiritual, que é o pior de todos os crimes.
A pior escravização é da nossa própria consciência. O cativeiro espiritual, para quem tem consciência de seus atos diante da vida, é tão assombroso quanto o inferno de Dante.
Citei de propósito: crime, castigo, escravização, consciência e inferno. Por isso, transitei pela Rússia até a Itália. Do judaísmo cristão, para mim o cristianismo é apenas uma vertente do judaísmo, é que reflito sobre a ética de ser pai, a espiritualidade e a anatomia do pecado-crime.
Seria muito fácil, hoje, virar um niilista, ou propor odes ao ateísmo, ou até mesmo incitar o agnosticismo. Fugir da culpa, omitir-me da responsabilidade ... pela consciência, voltei as minhas origens primitivas.
A sociedade, há muito tempo, virou uma charneca social. A corrupção, começa com nossas vidas, com nossas famílias e nossos filhos. Um homem que trai a esposa, o lar e a família, não vacila em trair a Pátria, em subornar, propinar e corromper. Os valores estão mortos. Uma ética forte, numa base familiar sólida, alicerçada em valores do judaísmo e do cristianismo, é tudo que um Estado requer. Mas a base, começa na família.
Há que se refletir.
Por fim, exatamente como no vídeo do curso de psicologia da UNIFRA, sobre alienação parental, reproduzido aqui nesse blog, descobri o que a Nina fala de mim para suas amiguinhas. Não perguntei nada. Mas a amiguinha dela me perguntou e em me perguntando revelou algo que eu desconhecia totalmente. A Nina inventou que eu sou um homem muito rico, sou advogado, e que trabalho em vários lugares e que – por passar viajando para trabalhar – é que eu não fico com ela.
Deve ser a forma que ela encontra para justificar-se perante seus amiguinhos e coleguinhas, afinal eu não a vejo e sou ausente de todos os atos de sua vida. Nesses dois anos em que ela foi levada para a casa dos avós, em Maçambará, nunca mais sequer vi seus cadernos, não participo do seu aniversário, no dia dos país eu não posso ir na escola. Ela deve ver os demais coleguinhas com o pai – e eu – embora ela saiba que eu existo, que ela me ama, ela precisa negar minha existência e para a negativa, ela inventa histórias sobre mim, fantasia, justamente para ter uma satisfação subjetiva. Afinal, os demais, estão lá com o pai. E o pai, que ela queria que estivesse com ela, pelo menos no dia dos pais, no dia do seu aniversário ... ao ter que matar a imagem e a simbologia paterna, ela prefere inventar que eu vivo viajando a trabalho e que por isso eu sou um homem muito rico, embora ela saiba que eu sou pobre.
O pai morto, com a morte física, faz parte. Quantas crianças vivem sem os pais. Agora, o pai vivo, que a própria criança precisa decretar sua morte ficta, deve ser um tormento psíquico-mental para um psique em formação, afinal dos 4 aos 6 anos, ela defronta-se com essa situação tão absurda quanto patética. E dois anos, no contexto de uma vida de seis anos, deve ser um tormento infinito, não revelado, ocultado, omitido.
Por tudo que eu tenho lido, principalmente livros e textos católicos, e também evangélicos, esse drama é comum a todos os filhos e filhas de pais que se separam. Existe uma guerra surda, escondida, não revelada, não identificada, que afeta a mente dos filhos e filhas.
E o que é pior: esse assunto é omitido, especialmente em face da liberalização dos costumes, a facilidade da traição, numa sociedade em que a cultura faz da traição um charme, um valor instituído e assimilado como parte do quotidiano, ninguém pensa nas crianças e nas conseqüências das decisões que os adultos tomam.
Esse fenômeno social é muito, muito, muitíssimo maior que nós podemos imaginar. Estatísticas demonstram que em 75% dos casamentos desfeitos, os filhos e filhas convivem com algum tipo de trauma e seqüelas psíquico-espirituais. Esse índice é assustador.
Revelo toda minha ignorância. Não entendia a Igreja católica e nem o conservadorismo evangélico. Foi preciso passar por tudo, integrar um Instituto que lida com alienação parental paterna, para descobrir a extensão dessa guerra social surda. Surda, porque ela não é revelada. Os inocentes, para não ferirem o genitor que detém a guarda, jamais revelam o que pensam. Apenas guardam para si e interiorizam a dor, a falta, certamente aquilo que ela não tem alcance para compreender em tão tenra idade. Suas mentes são programadas para matarem a identidade paterna.
Na fase adulta, quando tudo estoura, estoura também uma explosão de revoltas. A sociedade arde com conseqüências de um fenômeno social que ela própria criou. É altamente previsível o destino de filhos de pais desajustados, de casamentos marcados pelo trauma e pelo conflito entre os genitores.
Já crianças, cujos pais sempre viveram em amistosidade e fraternidade, tendem a ter uma vida harmônica e reproduzem o amor e os valores de um lar ajustado. São bem sucedidas na adolescência, não são marcadas por traumas, são bem sucedidas nos estudos e profissionalmente. E quando constituem seus lares, tendem a reproduzir o campo ético que herdaram dos pais.
Como sociólogo, sempre estudei muito a questão dos valores, o plano ético e o moral das sociedades. Um fato que sempre impressionou-me muito é o da honra dos samurais. Homens que cultuam a vergonha, têm honra e não vacilam, diante de uma desonra, sacrificar sua própria vida. Daí se deriva, no Japão, o profundo respeito pelos samurais e eles valores são repassados para sociedade como mote forte da Dignidade.
Estudei, em 1987, o caso de empregados de uma fábrica japonesa. Eles estavam descontentes com o salário e as condições de trabalho. Então, ao invés de fazerem greve, seguiram trabalhando, porém, colocaram uma faixa preta no braço direito. Esse fato foi muito vergonhoso para o dono da fábrica. Encerrou-se em seu escritório e fez um haraquiri.
O exemplo sintetiza a questão da existência de planos éticos regionais, como lidam com a honra e como são os desfechos dos casos que envolvem desonra afeta ao campo ético da moral de um povo.
Como disse, tudo começa na família. A cultura samurai é de berço. Assim como é de berço tudo o que praticamos no âmbito familiar. Latino-americanos, europeus, asiáticos, orientais...Aqui a cultura é o incentivo midiático a traições, homossexualismo, roubos e mortes, tudo, como parte do quotidiano, aceitável a luz da assimilação, estranhamente, acultural, mas que é endocultural.
Eu tenho comigo um livro de 1920, intitulado Verdades Indiscretas. Neste, o autor aborda a questão da corrupção no Brasil. Vejam bem leitores, o livro é de 1920. Segundo o autor, os políticos roubavam do setor público para manter as amantes em bordéis finíssimos. E havia um pacto entre oposição e situação. Um não denunciava o outro, pois ambos cultivam o mesmo hábito, o mesmo costume. Ali mesmo o autor já colocava que os homens que traíam suas famílias, esposa e filhos, não vacilavam em roubar da pátria, em se macular com o desvio de recursos públicos, com a corrupção e com a propina. Repito: isso foi escrito em 1920.
É óbvio que a base de tudo é a família e que família é tudo. Os filhos são reflexos dos pais e os pais fazem as famílias. Ajustadas ou desajustadas.
Eu, felizmente, tenho contado com uma compreensão cada vez maior da mãe da Nina e espero um belo consenso pelo futuro da criança. Por isso estou muito feliz.